Mulher Judia
(Poema Livre da autoria de Laurentino Piçarra)
Em cada renascer do sol lisboeta,
Os meus olhos perseguiam os teus
Como caravelas loucas de exotismo
Que beijavam ardentemente o Índico!
Os nossos sorrisos entrelaçavam-se
Numa dança pelas ruelas estreitas,
Ao som de uma música doce e singular
Que jamais ecoara pelas Igrejas
Ou pelas sinagogas encerradas do reino.
Mas a sombra do pecado perseguia-nos:
Os nossos lábios eram enclaves recônditos
Alheados de dogmas religiosos,
Inocentes de toda a perseguição movida
Por aqueles que proferiam desígnios divinos!
Mas os teus olhos azuis eram um mar de esperança,
Os teus cabelos negros, uma bênção da criação,
A tua cara branca, um areal de emoções!
Ao longe, os mercadores votavam olhos à tua formosura,
Provocando em mim uma ciumeira infinita,
Uma vontade de assumir a nossa paixão ardente!
Pensei em tempos apelar às sereias do Tejo
Que nos fretassem uma barqueta,
Para assim fugirmos rumo a um país tolerante,
Onde pudéssemos constituir família,
Sem que os representantes fanáticos de Deus
Importunassem dois rouxinóis inseparáveis
Que se completavam num firmamento de amor!
Mas naquele dia, 19 de Abril de 1506,
O sol apagou-se, as estrelas desvaneceram-se,
A escuridão semeou súbditos infames em Lisboa,
Sedentos de vingança e de ódio,
Acusando os judeus de todos os males:
Da peste, das doenças e até da fome!
Do Mosteiro de São Domingos, nasceria um rio,
Um rio de sangue, uma ilusão de purificação,
Uma estratégia diabólica dos frades da ignorância
Que logo incitaram à morte dos "hereges"!
Mulher judia, luz intensa da minha vida:
Nos meus pergaminhos de bom cristão
Bem corri desorientado em teu socorro,
Entrei pela tua casa com o coração a latejar,
Vi os corpos despedaçados dos teus pais
E até o teu irmão mais pequeno foi garrotado,
Mas não te vi ali naquele fatídico "mausoléu",
Pelo que prossegui com a busca desesperada!
Por entre as ruas, assistia ao linchamento público:
A população alvoraçada clamava em uníssono
Que esta era a suprema vontade de Deus!
Desci até à ribeira do Rio Tejo, e finalmente,
Lá vi o teu corpo, meio vivo e repleto de feridas,
A ser consumido nas fogueiras improvisadas!
Guardei uma última imagem do teu rosto
Que seria memória da minha saudade eterna,
E depois, as tuas cinzas voaram como borboletas
Para serem recolhidas pelas sereias do Tejo!
E eu impotente perante o motim popular,
Nada pude fazer para impedir o teu martírio.
Apenas olhei para o céu, e aí tive uma visão:
Um anjo deambulava por entre as nuvens
Abraçando todos aqueles que partiram
Naqueles três dias de imenso terror!
E eu aí percebi que aquele Santo Deus
Acolhia todos os que manifestavam bondade
E repudiava aqueles que invocavam o seu nome
Para cometer as mais terríveis atrocidades!
Deus nunca exigiu sangue, mas sim amor!
Nota-extra: Poema de homenagem às vítimas do "massacre judaico" de Lisboa que
decorreu entre os dias 19 e 21 de Abril de 1506 (na altura, em tempo de
Páscoa). Várias vidas foram ceifadas nas suas próprias casas, e outras foram
arrastadas para as fogueiras improvisadas nos lugares da Ribeira do Tejo
e do Rossio. Julga-se que terão morrido algumas centenas de
judeus/cristãos novos às mãos dos fanáticos perseguidores. No entanto, Garcia de Resende estima que teriam sido ao todo 4
mil - os mortos daquela deplorável chacina...
Estes versos foram igualmente elaborados em nome da tolerância/liberdade religiosa em todo o mundo!