Conteúdos do Blog

Nesta página electrónica, encontrará poemas e textos de prosa (embora estes últimos em minoria) que visarão várias temáticas: o amor, a natureza, personalidades históricas, o estado social e político do país, a nostalgia, a tristeza, a ilusão, o bom humor...

quinta-feira, 24 de setembro de 2015

Poema nº 125 - Versos dirigidos a Samarcanda


Versos dirigidos a Samarcanda 
(Lendária cidade milenar)
(Poema livre da autoria de Laurentino Piçarra)


Samarcanda,
Vitral colorido da História,
Mosaico de povos e culturas,
Refúgio de mercadores e viajantes,
Miscelânea de afamados pensadores
Tesouro camuflado por divagares subterrâneos!
Por entre o despertar desse teu luminoso olhar,
Logro avistar em ti maravilhas inenarráveis:
Árvores abençoadas pelo céu sorridente,
Riachos cristalinos que embalam no solo ardente,
Mesquitas faustosas em honra do Profeta,
Cúpulas que ascendem às nuvens,
Filosofias que revigoram as flores
Cavalos que confraternizam horizontes,
Segredos equiparados a lânguidos desejos,
Lágrimas que suplicam pelo glorioso passado,
Beijos versificados na insaciável poesia,
Vinhos que escorrem pelas ruas da sabedoria!
Ó Samarcanda, em ti reluz Omar Khayyam de Nishapur:
Mestre dos poetas orientais,
Senhor da álgebra e da astronomia
Esconderá a Lua o seu perdido manuscrito?
Em ti, minha doce e requintada Samarcanda
Também observo outras imagens
A espada triunfante de Alexandre Magno,
O frenesim da almejada Rota da Seda,
A difusão do papel inventado pelos chineses,
Os edifícios altivos erigidos por Tamerlão,
O observatório prodigioso de Ulugh Beg
E acima de tudo, essa tua nostalgia milenar
Que te converte numa equação singular
Onde anexas a poesia, a matemática e a astronomia,
Os três elementos fundadores da tua identidade!
Consciente da tua suprema dimensão universal,
Ao teu coração, Samarcanda, apenas te interrogo:
Que segredos confiaste somente às estrelas?
Que lendas propalavas tu aos deuses?
Que tecidos trajaste em séculos passados?
Que multidões acolheste nos teus mercados?
Que fidalguia cultivavas nos teus jardins?
Que versos de amor dedicaste à humanidade?
E eu, Samarcanda, que nunca te conheci,
Sei que a tua essência é inalcançável
Sei que ainda difundes o teu perfume irresistível,
Sei que és afinal imperatriz convertida em turquesa!




Foto - Islam Pictures



Nota-extra: Samarcanda é Património Mundial da UNESCO devido ao cruzamento de culturas no passado. É a segunda maior cidade do Uzbequistão, embora no passado já tenha sido dominada por sogdianos, persas, chineses, turcos, mongóis, russos... É conhecida ainda pela sua efervescência cultural - a cidade integrava a rota da Seda que fazia a ligação entre a China e a Europa, possuía nos seus mercados belos tecidos e cavalos, e passou também a ser um importante produtor de papel através da captura de prisioneiros chineses que foram colocados a laborar na região. Em Samarcanda, paravam viajantes e mercadores de diversas culturas...
A realização deste poema inspirou-se igualmente nas descrições presentes na obra "Samarcanda" de Amin Maalouf bem como em outras pesquisas efectuadas a nível electrónico.

Poema nº 124 - Arena do Martírio


Arena do Martírio
(Soneto da autoria de Laurentino Piçarra)


Nesta arena de lobos esfomeados,
Vejo-me encurralado pelo anseio,
Vencido pelos sonhos açoitados:
Não há sol no meu nublado receio!

O desespero cobre o solo indigente 
Os portões omitem negras surpresas:
Falsos cordeiros de olhar negligente
Alcateia de almas, sóbrias impurezas!

A plebe converte-se ao entusiasmo
Nas bancadas, saúda a cena trivial
Visa os desgraçados com sarcasmo!

Os portões abrem-se, saem as feras
Que dilaceram a minha ingénua carne:
Indigno pó deste "santuário" grotesco.




Magnífica Foto da autoria de Trey Ratcliff in Flickr


Nota-extra: O soneto contém uma profunda componente metafórica.

Poema nº 123 - Reticências...



Reticências...
(Soneto da autoria de Laurentino Piçarra)


Tudo na vida são meras reticências:
A bastardia da fugacidade terrena,
O silêncio das soturnas coincidências,
O jazigo perpétuo que me serena.

Caem as folhas do viajante Outono,
Voam as vírgulas do meu irrealizável ser 
Despem-se as interrogações do meu viver,
E repouso nas reticências do denso sono!

Que interessam os adjectivos altivos?
Ou a melancolia fingida das metáforas?
Somos somente eufemismos nativos!

E nesta mudez solitária das reticências,
Vivo no passado que o futuro irá esquecer:
Sou carne em dia, serei pó ao anoitecer!





Poema nº 122 - Olhares de Infidelidade



Olhares de Infidelidade
(Soneto da autoria de Laurentino Piçarra)


Mulher, pequei por tua culpa,
Pela ilusão que me vendeste
Pelo sorriso que transpareceste,
Minha prenda envenenada oculta!

Esses teus olhos azuis de perdição,
Essas tuas ondas do mar destrutivas
Fizeram-me naufragar na decepção,
Porque o teu sal frustrou expectativas.

Sim, tu rapariga que me persegues:
Maremoto cruel que a mim te atreves,
Sereia infiel a amores e namorados!

Após partilharmos marés vivas de olhares,
Soube da tua pungente traição em casar:
Desse futuro sombrio que te irá encarcerar!




Imagem retirada algures da Internet (Google Imagens)

Poema nº 121 - Versos do meu Ser Acabrunhado


Versos do meu Ser Acabrunhado
(Soneto da autoria de Laurentino Piçarra)


Padeço duma terrível frustração 
Que vagueia pelos dias enevoados,
Como um tornado regedor da desilusão
Que arrasa corações angustiados!

Em mim, as nuvens vertem lágrimas, 
Gerando torrentes depressivas
Que baptizam as palavras ínfimas
Das minhas alvoradas regressivas!

Sinto que a luz me exilou na escuridão,
No antro das entidades negativistas 
Que fomentam o tormento e a crispação.

Assisto à nugacidade da minha existência,
Ao triunfo poético da densa melancolia 
Que em mim se exalta com reincidência!



sábado, 5 de setembro de 2015

Poema nº 120 - O Manuscrito Ancestral do Palheiro Vermelho


O Manuscrito Ancestral do Palheiro Vermelho
(Poema livre da autoria de Laurentino Piçarra)


Naquele final de tarde,
Percorri os trilhos junto à Praia,
Contemplei aí o saudoso arrebol
Que pintava o céu duma cor alaranjada.
Subi ao paredão para almejar o horizonte,
Esse horizonte marítimo de alegrias e tragédias,
Que "matou" a fome humana com toneladas de peixe,
Mas que também testemunhou terríveis naufrágios,
Ou até depredações de vikings e berberes!
Entretanto na sequência deste meu solto divagar,
Desviei o olhar para a minha silenciosa retaguarda,
Havia algo que logo me captara a atenção:
Um palheiro secular de madeira,
Distribuidor de cores e encantos,
E cuja sorte merecia a minha natural inveja!
Todos os dias ele escutava o bater das ondas do mar,
Todos os dias ele sentia o imenso cheiro a maresia,
Todos os dias ele assistia ao frenesim da arte xávega,
Todos os dias ele tinha uma nova história para contar!
Os anos podiam passar impiedosamente,
Mas ele teimava em não envelhecer!
É património, é postal enraizado dum povo:
Morada de gerações de pescadores anónimos,
Gente humilde que arriscou as suas vidas
Para superar as adversidades do tempo!
Deprimido e exausto está o seu chão térreo:
Eficaz sorvedouro de mares de lágrimas
Vertidas por familiares em luto
Que choravam por cada barco que não retornava!
Sem licença ou resquícios de compaixão,
A desgraça batia assim muitas vezes à porta:
Quantos lobos do mar não sucumbiram às ondas letais?
Quantas almas não ficaram arrasadas para sempre?
Quantas cicatrizes não se instalaram nos corações?
Quantos medos não se recriaram a cada embarque?
Quantas crianças não ficaram órfãs do destino?
Que drama - este partir brusco e cruel
Sem um beijo, um abraço ou um adeus,
Sem uma sentida despedida!
Mas não choremos mais estes martírios:
Pois os espíritos daqueles que naufragaram
Não jazem no pequeno cemitério da cidade
Nem sequer debaixo do solo da antiga capela
Engolida pelo mar e substituída por outra,
Eles revivem sim nas nossas memórias:
São o exemplo honrado do passado,
A identidade que nos conduz no presente
E a prodigiosa inspiração do futuro!!!
Mas além da sua acentuada cor vermelha,
E da vegetação dunar que o enfeitava em redor,
Aquele palheiro escondia algo,
Um segredo nunca antes revelado:
Uma caixinha de madeira soterrada
Que dizem há séculos ter dado à costa,
Ignorando-se a sua origem!
Um pescador analfabeto que a encontrou,
Decidiu guardá-la ali, naquele edifício simbólico!
A caixa achava-se bem cerrada
Como se tratasse dum tesouro do além-mar!
Mas um dia aquele homem logrou por fim abri-la,
Detectando no seu interior um manuscrito,
Bem enrolado e de inegável antiguidade,
Afastou com ligeireza os seus bordos,
E ali jurou ter vislumbrado três palavras,
Como não sabia ler,
Correu excitado em direcção à Igreja Matriz,
Para consultar o Pároco local,
E este, diante desta comunidade de Santa Maria,
Depois de benzer o manuscrito,
Proferiu bem alto
Para que todos ouvissem
As três palavras latinas
Que rematavam a essência mágica de Esmoriz:
"VIRTUS IN LABORE"




Foto da minha autoria




Foto da minha autoria




Postal da autoria de José Bastos



Nota-extra - Poema dedicado ao povo de Esmoriz e que se cinge sobre o simbolismo dos seus palheiros à beira-mar. No que diz respeito à expressão latina "Virtus in Labore", esta encontra-se presente no brasão da cidade, e atesta o carácter trabalhador da sua comunidade.

Poema nº 119 - A Princesa do Areal


A Princesa do Areal
(Poema livre da autoria de Laurentino Piçarra)


Ó Mulher,
Perfeita escultura de areia,
Porque jazes tu nessa praia erma
Trajada de imensas flores e folhas?
Não deverias ser tu um segredo dos céus?
Não deverias ser tu um vulcão em cada coração?
Não deverias ser tu a inspiração do vento?
Ou até a razão do nosso acto de contradição?
Mas eu vejo-te solitária nesse vasto areal,
Inacessível e impenetrável,
Encoberto por falésias terríficas:
Autênticas muralhas inexpugnáveis
Que nem Ulisses nem Hércules demoveram!
O mar, teu irmão confidente, protege-te,
Não deixa que ninguém se aproxime de ti,
Frustrando qualquer aventureiro ou colonizador,
Seja ele Cristóvão Colombo ou Vasco da Gama!
Ao longe, fito os teus humildes adornos,
Que jamais ensombrarão a tua formosura,
Majestosa, singular e inatingível!!!
Durante o dia, sei que te refugias no sonho:
Nesse denso sonho que é a tua verdadeira epopeia,
Onde visitas castelos e torres de areia,
Em que domas os sentimentos de imperadores
Sim, tu, poetisa ilustre das suas cortes,
Que compões canções ao mar e ao vinho!!!
Por fim, à noite, deixas as tuas empíricas fantasias
E acordas, naquela praia, para o mundo terreno:
O mar fiel que te resguardou durante o dia
Pede-te agora que veles por ele,
A Lua gaba-te a tua incontestável pureza
Que o Sol galante ambiciona deflorar ao alvorecer!
Mas tu és decerto diferente das outras,
Não te curvas perante ninguém,
És senhora do teu destino, da tua verdade,
Do teu recôndito modo de viver!!!
E eu, pobre desgraçado, que ansiava ser teu escultor,
Adormeço, àquela hora, no meu modesto quarto
À espera de ser digno do maior privilégio:
O de seres parte integrante dos meus sonhos!




Escultura da autoria de Thomas Koet

Poema nº 118 - O Apóstolo de Baco


O Apóstolo de Baco 
(Poema livre da autoria de Laurentino Piçarra)


Ó Baco,
Tu que és o Deus mais venerado,
Enche o meu copo com o teu brioso vinho!
Concede-me essa poção das mil maravilhas
Que distancia o homem das amarguras da vida,
Que glorifica a existência do paladar
Que adoça inclusive o mais pálido pensador!
Imbuído da sua simbiose indescritível,
Aqui estou eu apóstolo farrapeiro
Para proferir a minha mágica homilia
Nesta taberna recheada de talhas barrigudas.
Ó estimado vinho, junta-te a nós para assim:
Entoarmos o sublime cante alentejano,
Lavrarmos poemas às donzelas vilafradenses,
Dedicarmos panegíricos aos sultões do Alentejo,
E revestirmos as planícies de múltiplas cores!
A meu lado, estão o Chico, o Manel e o Augusto!
Todos já ultrapassaram o ritual com distinção,
Digeriram três copos em poucos minutos,
E mesmo só possuindo a quarta classe,
Escreveram versos tão magníficos como os de al-Mutâmide,
Observaram o Universo com a mesma genialidade de al-Khayyam
Tornaram-se filósofos e polímatas como Avicena,
Graças àqueles goles consagrados
Que transformaram aquela mesa humilde
No mais altivo altar do honrado saber!
Mas chegara a altura da nossa missão ascética.
De sairmos e deambularmos pelos ares
Desta pitoresca terra de videiras e pomares,
Deixaremos assim a taberna, o nosso sacerdócio,
E lá iremos nós de ruela em ruela, cantar o nosso fado,
Nesta nossa peregrinação pelas pedras da calçada!
O nosso andar é semelhante ao dos frades capuchos,
Mas dizem que somos certamente mais originais!
Pregamos o dom natural de Baco em Vila de Frades,
Ó se ele alguma vez existiu, decerto que aqui nasceu!
Quantos admiradores ele não conquistou na terra de Fialho?
Quantas intelectualidades não beberam aqui da sua fonte?
Quem não se embriagaria nas profundezas do conhecimento?
O nosso culto propaga-se pelo mundo inteiro!
Ó bendito crer que não é penoso, mas saudável!
Nenhum de vós precisa de orar ao abençoado Baco
Para que ele seja o vosso protector;
Se desejardes louvá-lo com magnificência
Basta beber da sua obra e honrar o seu sabor!
Que o digam os romanos na sua adega de São Cucufate!
Que o digam os monges que também produziram vinho!
Que o digam as gentes desta terra milenar!
Se Vila de Frades tivesse um grandioso rio,
Ele seria da cor dos seus vinhos palhetes,
A maior fonte de inspiração aos olhos do Mundo,
Onde homens sedentos pela receita de Baco
Mergulhariam nesse inenarrável paraíso
Habitado por ninfas, filhas do Deus Baco,
Que ostentariam nas suas testas grinaldas de videira,
E se entregariam aos audazes aventureiros
Acompanhadas de largas taças de uvas:
Uvas doces, sensuais e curandeiras,
Uvas dessa terra à qual chamam Vila de Frades.





Foto da autoria de Manuel Carvalho



Nota-extra: Os vilafradenses também são conhecidos como "farrapeiros" e daí a utilização desta designação no nosso poema. Estes versos são assim dedicados ao povo e às tradições de Vila de Frades.

quinta-feira, 3 de setembro de 2015

Poema nº 117 - O Rio da Saudade Vindoura


O Rio da Saudade Vindoura
(Quintilhas da autoria de Laurentino Piçarra)


Mescla as tuas lágrimas doces
Com as minhas, fúteis e salgadas:
Vamos chorar juntos a futura saudade:
Meu amor que estás de malas aviadas
Para o estrangeiro da fugaz felicidade!

Vamos gota-a-gota encher um rio de dor
Que nos irá separar com a sua frieza
Deixando-nos em margens opostas
Amargurados, votados à infame tristeza,
Impotentes perante o destino detractor!

Com um cântaro simples e alaranjado 
Mergulharemos a boca na água agridoce,
Que fará reemergir as nossas recordações 
Partilhadas à distância dum adeus forçado
Que tortura as nossas íntimas emoções.

Quererei afogar-me nesse rio de nostalgia,
É nele que te guardarei com amor e ternura,
É nele que a neve terá inveja da tua alvura,
É nele que escutarei o ciciar das sereias 
Que se compadecerão da minha letargia!

Mas à noite irei ver-te nas águas do rio:
Serás reflexo puro duma estrela cintilante, 
Dum cometa que corre louco e galopante 
Para os braços do teu cúmplice amante:
Nesse trocar de beijos na concha da meia-lua!




Imagem retirada algures da Internet, Pesquisa do Google Imagens

Poema nº 116 - A Donzela Montanhesa


A Donzela Montanhesa
(Soneto da autoria de Laurentino Piçarra)


A minha indefinição brumosa 
Logo se desvaneceu no horizonte
Quando te vi, mulher formosa
Rainha do mais altivo monte!

O teu cabelo de âmbar semeava
Grãos de ilusão bruscos e letais
Que irrompiam em inveja declarada
Dos que aspiravam aos teus recitais.

Mas a tua boca era um verso solto:
Virgem, de rígida solidão conventual,
Que almejava, numa noite mágica, rimar!

Queria ser eu a alcançar o cimo da serra,
Para me prostrar no teu mosteiro pagão,
E beber do vinho jorrado do teu coração!




Imagem retirada algures da Internet/Pesquisa Google Imagens

Poema nº 115 - Noite Insaciável


Noite Insaciável
(Soneto da autoria de Laurentino Piçarra)


Eu vivia as noites em sofrimento,
Porque não me vinhas abraçar
E depositar teus beijos lânguidos
Neste meu corpo que é do teu velar!

Engolfava-me nos lençóis depressivos,
Na monotonia do meu ser mórbido
Que enxergava devaneios distorcidos
Embalsamados por um odor pútrido.

Titubeava com receio do escurecer:
De jamais nascer um dia afortunado
Em que tivesse o privilégio de te rever!

Senti que a Lua conspirava contra mim,
Gorando as torres do meu castelo ardente, 
E eclipsando os teus altares de jasmim!




Imagem retirada de: http://sonyfagundes.blogspot.pt/


Nota-extra: Utilizei a palavra "embalsamados" no sentido de "aromatizados".

Poema nº 114 - A Idosa da Esquina


A Idosa da Esquina
(Poema da autoria de Laurentino Piçarra)


Uma idosa mendigava na cidade,
Vivera ela oitenta Invernos dolorosos
Sem auferir ternura ou generosidade
Da sociedade de tiques invejosos!

A sua reforma era uma miséria,
Fruto pobre do seu árduo viver
Corrompido pela egoísta bactéria
Que gradualmente a faz morrer!

Foram tantos anos de costureira
A confeccionar as melhores vestes,
Mas a morte impiedosa e traiçoeira
Levou-lhe o marido e o único filho.

E ali estava ela na esquina tristonha,
Lacrimejava ao pedir a sua esmola
Ouvia nãos daqueles que davam à sola
E sins dos que percebiam a sua vergonha.

Por ela passou um político arrogante,
Pedia votos de glória para o seu partido,
Mas quando a viu com olhar desnutrido,
Ignorou-a, julgando ser alguém errante!

Por ela também passou um juiz frívolo,
Que nunca na vida prendera um ricaço,
Mas que logo lhe disse para ir trabalhar
Porque é absolutamente ilegal mendigar.

Por ela passou um empresário de renome,
Riu-se na cara da desgraçada senhora,
E logo pensou "mais uma mandriã sem nome"
"Parasita, vai morrer longe e sem demora!"

Por ela passou por fim o nosso Deus:
Aliviou-a da injustiça e do calvário terreno,
Voltando ela a reencontrar o amor dos seus
Naqueles céus abençoados pelo Nazareno!