O Crucifixo Falante
(Poema-Crónica da autoria de Laurentino Piçarra)
Na urbe de Assis,
Os ventos ressoavam pelas ruelas,
Enquanto famílias se aqueciam
Nas suas modestas casas de pedra!
Ah! O martírio do bispo Rufino
Não fora em vão:
Assinalavam o seu legado
Catedrais e Igrejas
Cujos vitrais eram borboletas de fé
Que se projectavam muito além
Semeando os desígnios da Paixão
Pelos bosques e mares vizinhos!
Muitos anos se passaram,
O mundo continuava quezilento
Cultivando o tumulto e a violência
Como garantes de um inferno real
Que domava as civilizações!
Mas a esperança nunca morre
Mesmo quando a luz é engolida
Pela densa escuridão do mal!
"Nascia" então perto de Assis
Uma nova igreja
De pendor rústico
Consagrada a São Damião
Que fazia repousar no seu altar
Um ícone raro de estilo bizantino:
Um crucifixo pintado do Messias!
Dizem que o anjo milagreiro
Não escolhe os alvos ao acaso
E assim foi!
Quis o destino,
Algumas décadas mais tarde,
Numa tarde de chuva torrencial,
Abrigar naquele templo,
Já bastante degradado
E com sinais de ruína,
Um jovem certamente desorientado
Que procurava respostas
Para o seu sentido de vida!
A sua alma trovejava de incertezas,
Mesmo que o seu silêncio exterior
Disfarçasse a sua crise de identidade!
Nas páginas da sua memória recente,
Repousava a sua irreverência juvenil:
A sua elegância em banquetes e serenatas
Onde se havia perdido com os amigos
A contemplar as mais belas musas
Rendendo-se à diversão local!
Como recordações pesadas
Proliferavam na sua mente
Os episódios dos conflitos bélicos
Entre as comunas italianas
Nos quais fora participante!
Mas ali estava ele agora
Sozinho, e a rezar perante uma cruz
Pintada para um mundo sem cores
Que continuava a ignorar o seu significado!
Rapidamente, o jovem se comove
Depois da sua trovoada interior,
Segue-se a chuva torrencial
Que atinge o seu coração
E logo se apercebe de uma voz
De origem transcendental
Que provinha do crucifixo adorado;
Primeiro, "alguém" chama pelo seu nome
Três vezes consecutivas
Depois é revelada a mensagem:
"Vai e repara a minha Casa,
Como vês, ela está em ruínas".
Deste então, o tempo começa a mudar
Lá fora, os aguaceiros deixam-se de fazer sentir
As nuvens desaparecem do horizonte,
Um arco-íris se forma subitamente:
O homem que orava rejuvenesce agora,
Também o clima da sua alma
Acompanha a evolução exterior,
Tornando-se aquela mais quente e acolhedora!
É altura de abraçar a nova missão,
E com a ajuda de muitos crentes,
Reconstruir a igreja de São Damião,
Mas isso só por si não basta!
Aliás, o Céu exige-lhe algo maior:
A salvação da verdade cristã
E o fim do inferno terreno.
Não através da espada e do ódio,
Mas a partir da palavra do amor!
Ressuscitado pela fé,
O jovem abraçará os pobres,
Consolará os leprosos,
Cuidará dos animais,
Aceitará como bela e singular
Toda a criação de Deus!
Peregrinará pelas terras da morte*,
Procurando a conversão de multidões,
Mas tal como aquela igreja humilde
Que abriu o seu coração,
Descarta o poder e a sumptuosidade!
A pobreza material é o caminho
Para a verdadeira solidariedade,
E o crucifixo falante
Que muitos fingem não escutar
Só precisou de o chamar
Por três vezes:
Francisco, Francisco, Francisco!
Imagem nº 1 - São Francisco de Assis reza perante o crucifixo pintado da Igreja de São Damião.
Quadro da autoria do pintor florentino Giotto di Bondone (1267-1337) que remete para o milagre do crucifixo da Igreja de São Damião, momento que viria a ser decisivo na vida posterior de São Francisco.
*Terras que eram abaladas por conflitos sangrentos e ódios religiosos
** Poema dedicado a São Francisco de Assis (1182-1226)