Tipologia do Conto - Comédia, Sátira
Numa terriola do interior, portadora de pouco mais do que 400 habitantes e com uma paisagem pautada pelos seus verdejantes montes e límpidas ribeiras que ainda captavam algum turismo rural, eram por demais evidentes a desertificação e o envelhecimento que se tinham acentuado nos últimos anos.
O seu respectivo Presidente de Junta de Freguesia era Casimiro, um homem na casa dos cinquenta anos, com um bigode lamentavelmente comparável a Estaline. Nem a tinta especial e de marca que utilizava para colorir o seu cabelo lograva sumir todas as brancas que lhe ressurgiam sem misericórdia. Todavia, era uma personagem relativamente calma, mesmo quando o procuravam espicaçar de múltiplas formas.
Nas assembleias da sua vila, sucedia-se o lavar de roupa suja, o tom de voz era excessivamente elevado e desagradável, as acusações não poupavam sequer a plateia que assistia às sessões. Os partidos do poder e da oposição degladiavam-se incansavelmente, exibindo os defeitos ou debilidades uns dos outros.
Num dia, os limites do bom senso foram mesmo completamente violados. Jacinto, elemento do partido da oposição, e uma pessoa que até então se regia pela serenidade, não digeriu bem a tensão e, com o punho bem cerrado, embateu estridentemente em cima da mesa. Rezam os testemunhos que o golpe foi tão intempestivo que três copos de água, presentes na mesa de trabalhos, viraram de uma assentada, e ainda não satisfeito, Jacinto, ao revelar um estado de nervosismo que nunca antes transmitira ao exterior, proferiu as seguintes palavras:
- Cara... ! Estou aqui nesta mer..., a suportar as vossas diárias frustrações, quando devia estar em casa com a minha família, a brincar com os meus filhos!
Evidentemente, a discussão nesse preciso momento atingiu proporções épicas, tanto que as autoridades policiais, provenientes da Sede de Município, localizada a 8 km da vila em questão, tiveram que entrar pelo pequeno e modesto edifício da Junta de Freguesia. Pelos vistos, não realizaram detenções, pois afinal o alerta fora dado por um habitante que residia nas proximidades, e que julgava erroneamente ter ouvido gritos de socorro, pensando que estaria a decorrer uma situação passível de terminar em homicídio, furto ou violação. A polícia conseguiu acalmar os ânimos, e como a viagem pelos outeiros fora algo desgastante e custosa, decidiu punir à mesma os deputados ou vereadores, como os quiserem chamar! Três tiveram que proceder ao pagamento de coimas porque as suas viaturas estavam mal estacionadas. Uma delas estava parada à frente duma garagem alheia, outra ocupava indignamente o lugar reservado às pessoas com limitações físicas, e por fim, a última estava estacionada em contra-mão. Terminava assim aquele dia pouco criativo e muito tumultuoso com o céu a compadecer-se, libertando lágrimas transformadas em chuva torrencial.
Na plateia, os murmurinhos e os risos costumavam ser o prato do dia! Uma vez, um homem curioso e algo intriguista (e já com idade avançada), o Sr. Jaime, engasgou-se, no meio de inúmeras gargalhadas, e tiveram mesmo que chamar a ambulância que veio em seu auxílio, mas que demorara algum tempo pois partira duma outra vila do interior, distada a mais de 30 km. Por sorte, um médico estava a pernoitar na terra, e por isso, chamaram-no logo, e o mesmo conseguiu atenuar a situação até à chegada da viatura dos soldados da paz. Felizmente, o episódio caricato não terminara em tragédia!
Cá fora, as pessoas da vila comentavam as deploráveis ocorrências nos cafés, restaurantes e parque principal. De facto, nem Charlie Chaplin, nem Buster Keaton, nem Mr. Bean conseguiriam igualar o pedestal hilariante destes simplórios autarcas armados em senhores da razão. A localidade tinha os maiores cómicos do mundo, mas ninguém sabia! Nem eles próprios desejavam admitir esse novo talento recôndito!
Casimiro, enquanto Presidente da Junta, mantinha sempre a calma, era quem exibia maior frieza nos momentos mais conturbados das reuniões, evitando, ao contrários dos outros, alimentar as guerras que tanto prejudicavam a imagem da terra no exterior. Contudo, era criticado pela pouca obra efectuada no seu mandato. Apenas mandou erguer no largo principal da vila uma pequena estátua em honra dum conceituado escritor que nascera naquele lugar, iniciativa que orgulhou os demais habitantes que admiravam aquele ícone da palavra. Mas de resto, pouco ou nada se tinha visto nos seus anteriores dois mandatos, o que motivara uma nova reflexão por parte dos 419 moradores da vila.
As eleições autárquicas estavam a bater à porta. Preparavam-se alguns cartazes e as carrinhas de propaganda começavam a percorrer as ruelas de calçada ou de pavimento térreo, emitindo mensagens favoráveis aos candidatos que se apresentariam às urnas.
Novamente Casimiro, apelidado já de "dinossauro" pelos seus acérrimos detractores da região, apresentava-se a um terceiro mandato, pelo partido que mais vezes aí ganhara as eleições desde o 25 de Abril. Para tentar prevenir qualquer resultado negativo, manda pavimentar, já em campanha pré-eleitoral, duas ruas que tinham algum movimento - a da Junta de Freguesia e aquela onde ele detinha a sua propriedade.
Por seu turno, surgiria um segundo candidato, de seu nome José, de 57 anos, um advogado de alguma nomeada, que encabeçaria a entidade partidária rival. Como se tratava dum meio pequeno com limitado número de famílias, José era, nada mais nada menos, do que o ex-cunhado de Casimiro, divorciado recentemente de sua anterior mulher Carla (então irmã de José). O problema é que o rompimento do matrimónio não havia sido amigável. Essa senhora nunca aceitara bem o término da relação e claro, seria agora a segunda figura de proa desta nova lista, capaz de revelar todos os podres de seu ex-marido.
Efectivamente, a difamação pura e simples alcança o auge em Agosto e Setembro. Casimiro era acusado de tudo e mais qualquer coisa. Carla acusava o seu ex-marido de se ter apropriado de dinheiros públicos para adquirir uma quinta, mencionava que ela tinha sido alvo de violência psicológica durante o casamento e chegou até ao ponto de descrever os "torpedos de enxofre" do seu ex-marido que quase rompiam os edredões de penas!
Por sua vez, Casimiro ignorava, mas o segundo elemento da lista, Rui de 32 anos e um dos mais activos jovens da vila, acusava José de andar metido nos copos e, que por vezes, pegava-se à porrada na taberna tradicional daquele meio.
"Inacreditável" era o título do jornal da Sede de Município que se referia a esta outra vila para descrever os argumentos utilizados pelos políticos, homens sem escrúpulos e que tudo faziam pelo poder!
Entretanto, seria apresentada uma terceira lista, liderada por Marciozinho, um anão barbudo de 1, 22 metros e que já contava com 44 anos de existência. O seu partido era novo, não possuía os mesmos argumentos nem a influência dos restantes (estes ainda recebiam apoios das sedes das concelhias partidárias). Como se não bastasse, Marciozinho era inexperiente a nível profissional, fora sempre sustentado pelos seus progenitores. Alvo fácil da discriminação devido à sua baixa estatura. Os mais supersticiosos acreditavam que ele era um ser diabolizado. Sim, havia analfabetismo e ignorância nesta terra, até porque nem todos tiveram o privilégio de estudar, conhecendo, desde a cedo, a vida árdua dos campos, onde o solo não lhes dava descanso, além do intenso sol que chegava para os sufocar de calor, especialmente no Verão. Voltando ao nosso anão, nem queiram saber o cabo dos trabalhos que foi para colocar o seu cartaz no centro da localidade! Não se tratou só duma questão de verbas que os seus pais, também inseridos na lista, tiveram de despender, foi também a imagem do cartaz que teve de ser reimpressa, já que da primeira vez, quase nem sequer se conseguia vislumbrar, na fotografia de grupo, o vulto do Marciozinho que era só o cabeça de lista!!! Quiseste criar um partido novo, ora paga lá do bolso estimada família do anãozinho... e não bufa! Mas pese o facto de ninguém dar nada por ele, a verdade é que fora o único que revelara projectos construtivos para a terra. Ele comprometia-se a reabilitar a velha e ainda pequena pousada destinada ao turismo rural e planeava ainda criar um pequeno centro de leitura para que todos pudessem aceder à cultura, ideias que até mereceram algum acolhimento da população.
O Sr. Mendes, considerado benemérito da terra, pela sua boa disposição em servir, na sua taberna, tantas rodadas de copos de vinho aos seus habitantes, concedia a sua opinião a um jornal distrital:
- Vem aí a luta pelos tachos! A vila está parada há mais de 10 anos, a eles jamais lhes pagarei um copo, mesmo quando estiver muito bem disposto! Eles que paguem do bolso deles, porque eles têm, eu não!
Por seu turno, a Sra. Amália, já com mais de 90 primaveras, expressava a sua versão dos acontecimentos:
- Não vou votar porque não há meios de transporte que me levem à mesa de voto, estou debilitada. Mas também digo-vos, desde já, que votaria em branco ou nulo!
Rodolfo, o coveiro da vila, argumentava que reunia também habilitações necessárias para o cargo de Presidente da Junta:
- Se é para enterrar mais a vila, acho que posso desempenhar bem as funções. Ordenava logo a modernização e ampliação do cemitério. Neste momento, temos mais cadáveres sepultados do que habitantes na vila, e mesmo esses, estão parados no tempo!
O dia D chegava, e não, não era o Desembarque norte-americano na Normandia, esse marco histórico não lhes interessava para nada, ao contrário das escolhas decisivas que tinham de tomar para salvaguardar o futuro da terra.
De fatinho e gravata, chegava Casimiro no seu Mercedes. Aí encontrou José, vestido duma forma não tão extravagante. As listas quase que se iam pegar, mas os três polícias destacados para a Mesa de Voto impediram males maiores!
Por fim, lá chegava no seu Papa-Reformas, Marciozinho que, mesmo assim, necessitou duma almofada para alcançar o volante. Fora o que se comportara duma forma mais humilde e exemplar em toda a campanha. Mesmo assim, era discriminado por alguns habitantes que troçavam dele. No momento do voto, necessitou igualmente duma cadeira para poder votar.
Estava a começar a noite mais quente de finais de Setembro, os resultados estavam para ser divulgados. A abstenção tinha sido elevada.
Marques, responsável pela presidência da mesa de voto, anunciaria os resultados: a Lista A de Casimiro reuniria 56 votos... os mesmos que o Partido B de José. Após serem transmitidos estes dois primeiros resultados, a povoação já temia um empate incrível e desmoralizante, mas ainda faltava saber os resultados da lista C de Marciozinho que... pasmem-se... conseguiria 57 votos!!!!!
Afinal o povo ainda era sábio na sua sentença, e castigara a má fé dos membros das duas principais listas que só procuravam expor publicamente as intriguices do costume! Marciozinho era mais capaz do que os outros dois cabeças de lista! E de facto, nos quatro anos seguintes, cumpriu o programa, promovendo o turismo na sua esbelta terra contemplada por uma planície mais atractiva! Conseguiria mesmo, através da assinatura dum protocolo com entidades públicas de saúde, a criação dum pequeno posto médico. Demonstrara pois que os homens não se medem aos palmos. Ele soube concentrar-se no essencial, naquilo que deveria ser a política, a arte de defender e gerir os interesses do seu povo. Cumpriria com distinção o limite máximo de 3 mandatos, e já com maioria absoluta. Deixou de ser discriminado para ser adorado, e mais tarde, atribuíram inclusive o seu nome a uma das ruas da vila.
Por seu turno, Casimiro e José humilhados, o primeiro por falta de obra, o segundo por denunciar todos os podres do anterior, acabaram por abandonar a política, e dedicaram-se definitivamente às actividades agrícolas.
O Sr. Marques da taberna afirmava satiricamente o seguinte:
- Tomaram a melhor decisão enquanto políticos! Oxalá que tentem a sorte nas aldeias que rivalizam com a nossa vila.

Desenho humorístico da autoria de Bordalo Pinheiro
Nota-extra - Toda esta narração é naturalmente fictícia (personagens, cenário, localidade...), não há qualquer crítica directa a alguém em concreto (nada disso!). Pretendemos sim com este texto motivar gargalhadas no leitor, mas por outro lado defendemos, tal como dizia e bem, Gil Vicente, o Fundador do Teatro em Portugal que "a rir, corrigem-se os costumes". Há pois alguma sátira neste conto.
Conto de Laurentino Piçarra
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